Coordenadas Curvilíneas

As coordenadas cartesianas são as mais usadas, mas não são as únicas. Para determinar o vetor $ \vec{r}$, que vai da origem ao ponto $ P$, podemos dar as três componentes cartesianas de $ \vec{r}$, que vêm a ser as três coordenadas cartesianas de $ P$, mas também podemos dar o tamanho do vetor, sua direção e seu sentido.

Coordenadas Polares

Como um exemplo não-trivial do uso de coordenadas curvilíneas, vamos tratar do Problema de Kepler (Terra em redor do Sol). Como se sabe, a trajetória de uma planeta está contida num plano que também contém o Sol. Assim, podemos, sem perda de generalidade, considerar o problema como sendo bidimensional o que nos permite utilizar coordenadas polares no plano.

A conexão entre as coordenadas polares e as cartesianas é dada pelas fórmulas

$\displaystyle x$ $\displaystyle =$ $\displaystyle r\cos{\phi}$ (1)
$\displaystyle y$ $\displaystyle =$ $\displaystyle r\sin{\phi}$ (2)

e pelas inversas
$\displaystyle r$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \sqrt{x^2+y^2}$ (3)
$\displaystyle \phi$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \arctan{\frac{y}{x}}$ (4)


\begin{pspicture}(0,0)(8,8)
\psline{->}(2,2.5)(6,2.5)
\psline{->}(4,0.5)(4,4.5)
...
...{$\vec{e}_{\phi}$}
\uput[0](5.8,2.3){$x$}
\uput[0](3.5,4.4){$y$}
\end{pspicture}



Seja $ \vec{r}=x\vec{i}+y\vec{j}$ um vetor de posição. Como mostra a figura, suas componentes ao longo dos eixos $ x$ e $ y$ são as coordenadas do ponto localizado na sua extremidade. Seja $ P$ este ponto, e $ P+dP$ um ponto muito próximo, de coordenadas (x+dx , y+dy). Se $ d\vec{r}$ denota o vetor de $ P$ a $ P+dP$, temos

$\displaystyle d\vec{r}=dx\vec{i}+dy\vec{j}$ (5)

Se denotarmos por $ ds^2$ o quadrado da distância entre $ P$ e $ P+dP$, temos

$\displaystyle ds^2=d\vec{r}.\vec{r}=dx^2+dy^2$ (6)

Para construir uma base apropriada para as coordenadas polares, vamos calcular $ \vec{\nabla}r$ e $ \vec{\nabla}\phi$:
$\displaystyle \vec{\nabla}r$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \frac{\partial \sqrt{x^2+y^2}}{\partial x}\vec{i}
+\frac{\partial \sqrt{x^2+y^2}}{\partial y}\vec{j}$  
  $\displaystyle =$ $\displaystyle \frac{1}{\sqrt{x^2+y^2}}\left(x\vec{i}+y\vec{j}\right)$ (7)

ou seja,

$\displaystyle \vec{\nabla}r=\cos{\phi}\vec{i}+\sin{\phi}\vec{j}$ (8)

$\displaystyle \vec{\nabla}\phi=-\frac{y}{x^2+y^2}\vec{i}+\frac{x}{x^2+y^2}\vec{j} =-\frac{\sin{\theta}}{r}\vec{i}+\frac{\cos{\phi}}{r}\vec{j}$ (9)

Para ter uma base ortonormal, escolhemos
$\displaystyle \vec{e}_{r}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \vec{\nabla}r$ (10)
$\displaystyle \vec{e}_{\phi}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle r\vec{\nabla}\phi$ (11)

isto é,
$\displaystyle \vec{e}_{r}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \cos{\phi}\vec{i}+\sin{\phi}\vec{j}$ (12)
$\displaystyle \vec{e}_{\phi}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle -\sin{\phi}\vec{i}+\cos{\phi}\vec{j}$ (13)

Diferentemente de $ \vec{i}$ e $ \vec{j}$, os vetores da base adaptada às coordenadas polares (Cartan falava na "base natural" das coordenadas polares) não são constantes. Fala-se, então, numa "base móvel", ou "referencial móvel" (moving frame). Já que são funções, calculemos suas diferenciais (serão úteis):
$\displaystyle =$ (14)
$\displaystyle =$ (15)

Estes dois vetores podem ser expandidos na base formada por $ \vec{e}_{\phi}$ e $ \vec{e}_{r}$. Usando a notação de Cartan, pomos
$\displaystyle d\vec{e}_{r}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \omega_{r\;r}\vec{e}_{r}+\omega_{r\;\phi}\vec{e}_{\phi}$ (16)
$\displaystyle d\vec{e}_{\phi}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \omega_{\phi\;r}\vec{e}_{r}+\omega_{\phi\;\phi}\vec{e}_{\phi}$ (17)

Uma aplicação interessante de referencial móvel pode ser visto ao equacionar as superfícies Mola helicoidal e Faixa de Möbius, usando os referenciais {T, N, B} (Triedro de Frénet, formado pelos vetores Tangente, Normal e Binormal de uma curva, que neste caso é o eixo destas superfícies).

Antes de prosseguir no cálculo, vamos fazer uma digressão sobre coordenadas curvilíneas num contexto um pouco mais geral.



Coordenadas Quaisquer

Sejam $ u_{i}$ ( $ i=1,\ldots,n)$, coordenadas curvilíneas num espaço que admite um sistema de coordenadas cartesianas. A expressão das $ u_{i}$ em termos das coordenadas cartesianas é conhecida. Construímos, calculando os gradientes das funções $ u_{i}$ e normalizando, os vetores $ \vec{e}_{i}$, ( $ i=1,\ldots,n$), tais que

$\displaystyle \vec{e}_{i}.\vec{e}_{j}=\delta_{ij}$ (18)

Diferenciando ambos os membros, temos

$\displaystyle d(\vec{e}_{i}.\vec{e}_{j})=0$ (19)

ou

$\displaystyle d\vec{e}_{i}.\vec{e}_{j}+\vec{e}_{i}.d\vec{e}_{j}=0$ (20)

Ora,

(21)

logo,

(22)

e, como $ \vec{e}_{i}.\vec{e}_{l}=\delta_{il}$, temos

(23)

e , usando (
20), obtemos que

$\displaystyle \omega_{ij}+\omega_{ji}=0$ (24)

Daqui se conclui que
$\displaystyle \omega_{ii}$ $\displaystyle =$ 0 (25)
$\displaystyle \omega_{ij}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle -\omega_{ji}$ (26)



Voltando às Coordenadas Polares, vemos que as expressões em (16) podem ser simplificadas, pois $ \omega_{rr}=\omega_{\phi \phi}=0$ e $ \omega_{r\phi}=-\omega_{\phi r}$.

Para calcular $ \omega_{\phi r}$, lembremo-nos de que, numa base ortonormal,

$\displaystyle d\vec{e}_{\phi}=(d\vec{e}_{\phi}.\vec{e}{r})\vec{e}_{r}+(d\vec{e}_{\phi}).\vec{e}_{\phi}).\vec{e}_{\phi}$ (27)

Comparando com (17), chegamos a

$\displaystyle \omega_{\phi r}= d\vec{e}_{\phi}.\vec{e}_{r}$ (28)

O produro escalar acima é facil de calcular:
$\displaystyle d\vec{e}_{\phi}.\vec{e}_{r}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle (-\cos{\phi}\;d\phi\vec{i}-\sin{\phi}\;d\phi \vec{j}).
(\cos{\phi}\vec{i}=\sin{\phi}\vec{j})$  
  $\displaystyle =$ $\displaystyle -\cos^2{\phi}\;d\phi-\sin^2{\phi}\;d\phi$  
  $\displaystyle =$ $\displaystyle -d\phi$  

Conclui-se então que

$\displaystyle \omega_{\phi r} = -\omega_{r \phi}=-d\phi$ (29)

e que, portanto,
$\displaystyle d\vec{e}_{r}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \vec{e}_{\phi}d\phi$ (30)
$\displaystyle d\vec{e}_{\phi}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle -\vec{e}_{r}d\phi$ (31)

Podemos, agora, voltar ao Problema de Kepler


Coordenadas Esféricas

Neste sistema, usamos o tamanho do vetor, sua direção e seu sentido, ou seja, o módulo $ \vert\vec{r}\vert\equiv r$ e dois ângulos que podem ser os ângulos $ \theta$ e $ \phi$ da figura. As coordenadas esféricas do ponto $ P$ são, então, $ r$, $ \theta$ e $ \phi$.




\begin{pspicture}(0,0)(9,6)
\psline[linewidth=1pt](2,2)(5.5,2)
\psline[linewidth...
...}
\uput[0](1.5,5.4){$z$}
\uput[0](3,4){$P$}
\uput[0](2.5,3){$r$}
\end{pspicture}


A relação entre as coordenadas cartesianas e esféricas é dada por

$\displaystyle x$ $\displaystyle =$ $\displaystyle r\sin{\theta}\cos{\phi}$ (32)
$\displaystyle y$ $\displaystyle =$ $\displaystyle r\sin{\theta}\sin{\phi}$ (33)
$\displaystyle z$ $\displaystyle =$ $\displaystyle r\cos{\theta}$ (34)

sendo as inversas dadas por
$\displaystyle r$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \sqrt{x^2+y^2+z^2}$ (35)
$\displaystyle \phi$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \arctan{\frac{y}{x}}$ (36)
$\displaystyle \theta$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \arctan{\frac{\sqrt{x^2+y^2}}{z}}$ (37)

As coordenadas cartesianas referem-se à base fixa formada pelos vetores unitários $ \vec{i}$, $ \vec{j}$ e $ \vec{k}$. De fato, o vetor de posição $ \vec{r}$, que termina no ponto $ P$, tem projeções ao longo dos eixos dessa base que são exatamente as coordenadas de $ P$. Note-se que

$\displaystyle \vec{\nabla}x$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \vec{i}$  
$\displaystyle \vec{\nabla}y$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \vec{j}$  
$\displaystyle \vec{\nabla}z$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \vec{k}$  

Qual será a base que, para as coordenadas esféricas, desempenha o papel da base $ \vec{i}$, $ \vec{j}$, $ \vec{k}$? A pista está dada pelas equações acima: devemos procurar os vetores que são os gradientes das funções $ r(x,y,z)$, $ \theta(x,y,z)$, $ \phi(x,y,z)$.

Temos:

$\displaystyle \vec{\nabla}r = \frac{\vec{r}}{r}\;.$ (38)

Logo, temos o primeiro vetor da base,

$\displaystyle \vec{e}_{r}=\frac{1}{r}(x\vec{i}+y\vec{j}+z\vec{k})$ (39)

Analogamente, podemos calcular $ \vec{e}_{\theta}$:
$\displaystyle \vec{e}_{\theta}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \vec{\nabla}\left(\arctan{\frac{\sqrt{x^2+y^2}}{z}}\right)$  
  $\displaystyle =$ $\displaystyle \frac{1}{r^2}\frac{1}{\sqrt{x^2+y^2}}\left[xz\vec{i}
+yz\vec{j}-(x^2+y^2)\vec{k}\right]$  

Finalmente, calculamos $ \vec{e}_{\phi}$:
$\displaystyle \vec{e}_{\phi}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \vec{\nabla}\left(\arctan{\frac{y}{x}}\right)$  
  $\displaystyle =$ $\displaystyle \frac{-y\vec{i}+x\vec{j}}{x^2+y^2}$  

Verifica-se sem qualquer dificuldade que os vetores $ \vec{e}_{r}$, $ \vec{e}_{\theta}$ e $ \vec{e}_{\phi}$ são ortogonais, e que $ \vec{e}_{r}$ é unitário. Contudo, $ \vec{e}_{\theta}$ é tal que

$\displaystyle \vec{e}_{\theta}.\vec{e}_{\theta}=\frac{1}{r^2}$ (40)

e $ \vec{e}_{\phi}$ é tal que

$\displaystyle \vec{e}_{\phi}.\vec{e}_{\phi}=\frac{1}{r^2\sin^{2}{\theta}}$ (41)

Em princípio não há qualquer problema em usar uma base de vetores não unitários. Porém, uma base ortonormal tem os seus confortos, e então preferimos usar os vetores
$\displaystyle \vec{e}_{r}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \frac{1}{r}(x\vec{i}+y\vec{j}+z\vec{k})$ (42)
$\displaystyle \vec{e}_{\phi}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \frac{-y\vec{i}+x\vec{j}}{\sqrt{x^2+y^2}}$ (43)
$\displaystyle \vec{e}_{\theta}$ $\displaystyle =$ $\displaystyle \frac{1}{r}\frac{1}{\sqrt{x^2+y^2}}
\left[xz\vec{i}+yz\vec{j}-(x^2+y^2)\vec{k}\right]$ (44)

Em termos desta base, seja $ \vec{v}$ um vetor que começa no ponto $ P$. Então podemos escrever

$\displaystyle \vec{v}=(\vec{v}.\vec{e}_{r})\vec{e}_{r}+(\vec{v}.\vec{e}_{\theta})\vec{e}_{\theta} +(\vec{v}.\vec{e}_{\phi})\vec{e}_{\phi}$ (45)

ou

$\displaystyle \vec{v}=v_{r}\vec{e}_{r}+v_{\theta}\vec{e}_{\theta}+v_{\phi}\vec{e}_{\phi}$ (46)

Usando as relações sobre Coordenadas Gerais, podemos encontras as diferenciais deste sistema (ver em Maple).


Henrique Fleming (junho de 2004)
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